A estrada de Fráguas – se é que de estrada se pode falar, já que era apenas um caminho um pouco mais largo! – iniciada havia décadas, provavelmente no início do séc. XX, tinha encalhado nos 50-60 metros finais para unir à estrada Nacional 232 no local onde se encontra actualmente a pequena rotunda centrada pelo cruzeiro calcário, em Vila Nova de Paiva. Ao longo dos anos, fui ouvindo traços dessa história que me pareceu ter sido para os fravecenses – os habitantes de Fráguas – uma pequena odisseia que permanece viva depois de passados mais de 50 anos.
Ao tentarmos narrar a história por escrito, pretendemos apenas que não morra. Por um lado, a maioria dos novos não conhece a história, por outro, tenho assistido através de um blog sobre Fráguas (www.fraguas.org), que há uma certa curiosidade, por parte de determinadas camadas da população, em saber coisas do passado da aldeia. E recordo, relacionado com o nosso tema, a exploração de uma fotografia tirada aquando da construção da estrada para Vale de Cavalos, outra a que o povo de Fráguas deitou mão… e construiu.
Há um outro factor a não negligenciar: os pais e avós de hoje quase deixaram de contar histórias às crianças. Os momentos de contar histórias transmitindo-se o legado de umas gerações às gerações seguintes passaram a ser ocupados pelo televisor, internet... E contudo essa transmissão do património histórico e cultural, sobretudo de âmbito mais local e regional, é muito importante para a criação de raízes dos mais jovens no seu meio.
É por todas estas razões que decidimos ouvir alguns personagens desta história para a lavrarmos em papel.
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Estamos em princípios de 1957. Fráguas é uma aldeia relativamente pequena nada se vislumbrando nela, para além do pelourinho e do frontal da Fonte do Cabo, que tenha sido sede de concelho. Parece até que a aldeia fora abandonada pelo poder local. É assim que, já no início do século XX, cremos, os seus habitantes se organizaram e, a expensas suas e com o seu próprio trabalho, com marretas, guilhos, ferros, enxadas e outros utensílios, construíram a «estrada», apenas um caminho mais largo, de ligação a Vila Nova do Paiva. Dantes a ligação à vila era feita por um caminho muito antigo que passava pelo Pereiro, subia até ao Vale das Olas e continuava pela denominada «Cruz de Fráguas» um cruzeiro granítico ainda hoje existente no cimo dum monte. Passava depois pela Várzea até Vila Nova, acabando algures na actual Rua da Cruz de Pedra. Era mais curto o trajecto e portanto continuou, por várias décadas, a ser utilizado sobretudo por pessoas a pé.
Em 1957 ainda praticamente não tinha começado a emigração para a Europa e os emigrantes para o Brasil não tinham conseguido alterar o perfil da aldeia com ruas estreitas e com muitos patins, sem energia eléctrica, ruas por calcetar, casas pequenas feitas em granito onde viviam famílias frequentemente numerosas, alguns palhais ainda cobertos de colmo, Politicamente estamos no pleno da ditadura de Salazar e, como tal, muitos se sentiam vigiados e pressionados a dados comportamentos. Muito cuidado com a língua e com tudo o que fosse inovação ou perturbação da ordem estabelecida! Vivia-se dificilmente com o trabalho de cada dia monótona e penosamente picado sol a sol e sem perspectivas de futuro. Os trabalhos agrícolas e seus derivados eram a ocupação da quase totalidade da população.
Até o clima era diferente do de hoje. De inverno, nevava e chovia meses seguidos. Era inverno que, para o ser verdadeiramente, deveria trazer três cheias grandes antes do Natal! Os lameiros enchiam-se de água que arrastava folhas e outros detritos orgânicos que davam meio sustento às terras.
À noite, organizavam-se os serões para fabricar artesanalmente alguns utensílios indispensáveis às lides e ao vestuário do dia a dia. Também, de quando em vez, organizavam-se bailes que eram uma maneira de o pessoal se divertir um pouco mais e dar mais asas à imaginação… e não só!
Quer os serões quer os bailes constituíam formas de convívio indispensáveis entre os habitantes.
O mato cortado na serra passava a chamar-se estrume e era trazido para as lojas dos animais que o curtiam e que na Primavera seguinte iria dar a outra metade do sustento às terras de cultivo. O mato cortado que já não cabia nas lojas dos animais era curtido na própria via pública pela água das chuvas e pelos dejectos dos animais (e até humanos!) – constituíam as estrumeiras – e, depois, na Primavera seguinte, era misturado («cortado») com o proveniente das lojas dos animais de fabrico mais perfeito e mais nutritivo para as terras. Em Maio semeava-se quase tudo. Depois vinham as ceifas e as malhas com todo o calor. Tudo o que fosse um pouco mais plano dava centeio para pão. Vinha a festa da Senhora e notava-se um abaixamento rápido do nível da água no rio, no rego do concelho e noutros pequenos regadios e poços. Tinha-se de dormir fora e regar de noite ou guardar a água até encher poças para depois se regar. Por vezes, havia muita gente fora da povoação e, pelas lanternas de petróleo acesas com que se regava, era possível, muitas vezes, saber que dada pessoa andava a regar em dado lugar. Vinham as colheitas, punham-se dezenas e dezenas de dornas e pipas no rio para tapar as frestas entre as aduelas. Fazia-se a vindima, o vinho e a aguardente, levava-se o estrume curtido de Maio a Setembro às terras mais altas, para a sementeira do centeio.
Era este o ritmo de Fráguas e, certamente, o da maioria das terras vizinhas. Praticamente todos marchavam neste ritmo ao longo do ano sinalizado pelos muitos dias santos que então guardavam e que, a nível de cada dia, o sino da aldeia não esquecia de lembrar.***
Ora o Júlio Lino, então um rapazola, tinha sua bicicleta – que era então um luxo, diga-se, – e quando ia a Vila Nova do Paiva, era para ele penoso ter de esperar, sempre que chegado em frente ao local onde se encontra o actual mas não usado restaurante «Toca do Coelho», à entrada da vila, por qualquer carro de vacas que pachorrentamente subisse o caminho. Aí terminava, vindos da aldeia, a estrada de Fráguas. De facto era apenas um caminho bastante lamacento no inverno, apertado como tantos outros por esse concelho e país fora onde apenas cabia um carro de vacas. Ali não era possível, porque o caminho era estreito e ladeado por dois muros de cerca de metro e meio de altura, ultrapassar ou cruzar com qualquer outro veículo mesmo que fosse apenas uma simples bicicleta.
Quando os fravecenses, no início do séc. XX, tinham aberto a estrada, chegados ali, tinham sido obrigados a parar porque os terrenos ladeantes do caminho eram pertences de gente influente de Vila Nova, o Sr. Sá Pinto, o Sr. Joaquim Almeida e ainda duns senhores de Covelo de Paiva.
Ao Júlio Lino acontecera, várias vezes, ter de esperar apeado da ginga, vários minutos, até que qualquer carro de vacas, vindo em sentido contrário, passasse aqueles 50 a 60 m de caminho. A pouco e pouco começou a ruminar-lhe a ideia, na sua cabecinha pensadora, de acabar a abertura da estrada de Fráguas iniciada havia décadas. Cada vez que passava por ali, a ideia não lhe saía do pensamento e, um dia, decidiu que se tinha de deitar mãos à obra. Amadurecida a ideia, era preciso concretizá-la.
Acontece que o Augusto Daniel, já falecido, a quem o Júlio fizera uns trabalhos gratuitos, tinha-lhe prometido, como retribuição, que lhe emprestaria o salão da sua casa para um baile, quando fosse preciso. A ocasião chegara. O Júlio organiza então um baile cujos custos, incluindo o rapaz da concertina – o Felisberto de Vila Nova – e o vinho ficariam totalmente por sua conta. Como era habitual as despesas dos bailes serem cobertas equitativamente pelos rapazes da aldeia, a malta contactada questionava-se sobre o porquê de o Júlio oferecer um baile. Interrogado, respondia que, durante o baile, saberiam do seu objectivo.
E souberam! Durante o baile, os homens e rapazes presentes foram informados, um a um, ao ouvido, das intenções do Júlio. Nessa mesma noite, deveriam vir até junto da vila e deitar abaixo os muros que ladeavam o caminho, alargando-o.
Quase todos os presentes concordavam mas apontavam, em silêncio, o dedo para um indivíduo que andava no baile. É verdade! No baile havia um intruso, um «de fora»! Era nem mais nem menos que o Mário Pedro de Barrelas. Namorava em Fráguas a moça com quem viria a casar.
Gerou-se então um impasse que só viria a ser ultrapassado quando o próprio Júlio Lino acompanhado de dois ou três mais afoitos foram ter com o Mário Pedro e, por alto, como quem não quer a coisa e tentando palpar pulso, saber da sua concordância ou não sobre o assunto e, no caso de discordância, de guardar absoluto silêncio sobre o segredo. Acabaram por lhe expor o projecto.
O Mário não só concordou como se ofereceu para colaborar com o que fosse necessário e possível, desde que toda a malta não se expusesse desnecessariamente. A situação era bem conhecida do Mário Pedro, um barrelense de gema e filho de boa família da vila. Também ele tinha de esperar apeado na sua ginga quando, naquele troço de caminho, à entrada da vila, sempre que um carro de vacas vinha em sentido contrário. Além disso, dizia, era uma vergonha que uma aldeia construísse sozinha uma estrada e por causa de dois ou três da vila acabasse ali quase num beco sem saída. Era uma vergonha, até para a vila!...
Estudada a estratégia, o Mário deveria ir já, de bicicleta, para a vila e, em caso de qualquer anomalia, avisar os de Fráguas para abortar a operação. Eram necessárias todas as precauções pois a GNR vigiava, mesmo de noite, o concelho. E estávamos em pleno período salazarista. E se os da capa russa aparecessem? Como seria? A questão tinha forçosamente de se colocar.
Entretanto, o Júlio ultimara com os homens as últimas aferições da estratégia.
Era quase meia-noite quando uns 14 indivíduos armados de ferros de pedra, sacholas e outros utensílios caminhavam à frente do Júlio, para Barrelas.
Parece um rebanho! – pensou o Júlio para com os seus botões.
A Lua apontava um quarto crescente ainda muito sumido e as nuvens carregadas na maior parte do firmamento tornavam a luminosidade quase nula. Quando chegaram ao local da recente casa do sr. Tibério, então a última da aldeia, o Júlio apercebeu-se de que três o quatro meliantes saíam do trilho. Estou bem lixado com o pessoal! Há sempre indivíduos que roem a corda! – pensou para consigo o Júlio.
Mais desapontado ficou quando junto ao local onde fica agora a casa do Fernando Trindade mais uns tantos cortaram para fora da estrada. E mais ainda na cruz de S. Pedro! Quando entraram na Mata Má, eram já só uns quatro ou cinco à frente dele. E ficou desapontado de todo quando até esses, já quase no fim da Mata Má, a uns 50 m da actual rotunda de Fráguas, se escapuliram!
Não desanimou porém. Só meio triste por todos terem roído a corda! Assolava-o apenas a eventualidade de um mau encontro com algum GNR. Munido do seu pequeno mas jeitoso ferro da pedra que trazia consigo, dispôs-se, ainda que sozinho, a começar a trabalhar.
Saiu da estrada, pelo largo e, fora da mesma, já de costas para a vila, perto do caminho que queria alargar, virou-se e reparou ocasionalmente na carvalha que existia frente ao lugar em que se encontra hoje o já desactivado restaurante «Toca do Coelho». Era uma carvalha enorme conhecida de todos os fravecenses até porque, quando vinham à feira, esperava-se ali por alguém ou as mulheres aproveitavam para se aperaltarem, conversarem ou trocarem de calçado. Era também um ponto de encontro onde esperavam uns pelos outros. Este lugar era já um ermo sem qualquer casa para além dumas eiras, já longe, e ainda hoje existentes, já algo afastado da vila. Das fontes de Vila Nova até à casa do Tibério, já em Fráguas, nem uma casa havia, nesse tempo. E, claro! Não havia ali iluminação.
Ao olhar para a carvalha, no quase lusco-fusco, não é que esta lhe parecia mais grossa?
Com mil diabos!!! Engordou!... – pensou para consigo. E um calafrio lhe subiu pela espinha quando se apercebeu que o tronco mexia! Algum da capa russa já informado da marosca e pronto para o mandar para o chilindró?
Mas permaneceu quieto e, observando atentamente, apercebeu-se que eram duas pessoas, mais tarde ainda, que falavam, e acabou por reconhecer a voz do Abel Lamas que dizia qualquer coisa, baixo, a outro que identificaria como sendo o António Tito, actualmente já falecido em França.
Tinham-se destacado do pelotão e iam bem à frente, de tal modo que o Júlio, não tendo contado os que se tinham escapado do rebanho, nem imaginava que pudessem estar ali. Na verdade porém, eles eram apenas os últimos que se tinham escapulido, já na Mata Má.
Desfeito o equívoco, combinaram, sem perder tempo, começar já a trabalhar apesar de apenas terem dois ferritos da pedra e uma sachola. E não esperaram mais. Metiam os ferros entre as pedras e era só virá-las! Em meia hora, os muros que teriam metro e meio a dois metros, ficaram reduzidos a menos de meio metro. Faziam barulho mas não se sentiam muito incomodados pois uns trovões no céu ajudavam a camuflar o rolar das pedras soltas para o caminho e para a vinha, umas sobre as outras.
A azáfama era tanta que mal se aperceberam de que alguém se aproximava correndo e que, de tão cansado que vinha, não conseguia conter a respiração. Se lhe tapassem o nariz e a boca, estoirava que nem uma castanha!
– Parai, diabos! Vem aí gente! Embora! Parai!
É que ouvia-se o barulho em meio povo de Barrelas! Daí a pouco estaria ali a patrulha dos da calça parda e o pessoal iria todo de gaveta! As pessoas começavam a acordar! No Outeiro da vila ouvia-se tudo em claro!
E raspou-se a toda a pressa, agora pela estrada nacional abaixo, para não ser reconhecido. Não queria mesmo nada encontrar-se naquele momento, mesmo que fosse com o melhor amigo! Tinha lobrigado, atento, dois vultos de homens que se encaminhavam para o lugar donde vinha o barulho do rolar dos calhaus. E apressou-se, tanto quanto as pernas conseguiam. Se não fosse ele, os três diabos que desfaziam os muros teriam ido, certamente, parar ao calabouço e responder pelo delito.
O caminho e a vinha estavam já pejados de pedras. Como o Mário Pedro era gajo de confiança, tendo-o ouvido, deixaram apressadamente o trabalho, e – ó pernas! – a caminho de Fráguas. Tão rápidos iam que só abrandaram, com o cansaço, na Mata Má. Contudo, contentes com o trabalho feito, iam dormir o que restava da noite.
Passadas umas horas, era o padre Joaquim que queria ir celebrar a missa dominical a Fráguas e não conseguia passar. Os carapuças bem esperaram até que passada uma hora, já cerca das oito, lá apareceu ele a pé, com a sua bengalita, aborrecido com a situação. Só o Júlio e os outros dois sabiam do que se passava. Mas, depois de todos saberem, ninguém em Fráguas se preocupou mais com o assunto. O povo trabalhava e fazia toda a vida normal como dantes. Passou mais de um melancólico mês de Inverno… Parecia tudo ter caído no esquecimento… …Até que um dia!…
Até que um dia, numa tarde de domingo, a patrulha da GNR aborda, em Fráguas, o Júlio Lino, intimando-o a comparecer, no dia seguinte, pelas nove horas, no posto da GNR de V. N. Paiva para falar com o senhor cabo da guarda. Como o dia seguinte era dia de trabalho, o Júlio pensou que era melhor ir já nesse dia, já quase à noite, ao posto. Os guardas não se opuseram e combinaram que, enquanto eles vinham já a pé para Vila Nova, ele iria comer qualquer coisa e seguiria atrás de bicicleta. Um pequeno percalço apareceu ainda. Uma roda da ginga estava furada. Resolvido o problema, ainda conseguiu avistá-los na Mata Má. E lá foram todos para o posto.
Como o senhor cabo não contava com o Júlio ainda nesse dia e como ainda estava a comer, entretiveram-se o Júlio e uns guardas a jogar uma suecada. Só depois de mais de uma hora, o senhor cabo lá se resolveu a mandar entrar e ouvir o Júlio.
O cabo da guarda começou por perguntar ao Júlio há quanto tempo não havia um baile em Fráguas. É que, durante o inverno, eram praticamente semanais os bailes na aldeia e, desta vez, havia já mais de um mês que não havia. O Júlio não se recordava mas acabou por concordar com o cabo em que haveria bem cerca de um mês que não havia um baile na aldeia. E o cabo lá ia inquirindo o Júlio para ver se conseguia tirar alguma coisa dele.
– Quem é que organizou o último baile?
– Eu mesmo! – Respondeu o Júlio.
– Quem foi o tocador?
– O Sr. Felisberto.
– Quanto pagou?
– Eu fiz anos e ofereci o baile à rapaziada! – continuava o Júlio.
– Então e o senhor Júlio tinha dinheiro para pagar sozinho o baile? – continuava o cabo.
E, virando-se para o Raul, um guarda de Ariz ali presente, mandou-o chamar o Felisberto, o da concertina, a casa, algures em Vila Nova. Passada cerca de meia hora, regressa sem o ter encontrado. Se o tivesse encontrado, o resultado seria o mesmo! O Júlio e os de Fráguas já tinham combinado, há muito, com o Felisberto o que responder se interrogados pelas autoridades sobre os pagamentos de bailes.
– Sr. Júlio, diga-me: Sabe quem deitou abaixo os muros do caminho aqui em Vila Nova?– Então é por causa disto que me chamaram aqui ao posto? – perguntou desta vez o Júlio. – Se era isto que queria saber, era bem escusado ter falado sobre o baile!
– Por causa disto e doutras coisas que vou explicar. – respondeu o cabo.
– O responsável por deitar os muros abaixo sou eu! – afiançou o Júlio.
O cabo da GNR ficou pasmado. Mas, ao mesmo tempo terá pensado consigo que afinal tinha sido muito fácil descobrir mais um caso de polícia. E pergunta: – Porquê?
– Sabe que eu trabalho muitas vezes em Vila Nova e às vezes nem consigo cruzar com qualquer carro de vacas que venha em sentido contrário. Fui eu o da ideia! Falei com a rapaziada no baile, secretamente, se era de comum acordo, vir por aí acima e dar cabo dos muros.
– E quantos eram ao todo a fazer esse trabalho?
– Ó senhor cabo, na minha turma éramos uns quatro ou cinco mas, na turma que vinha à frente, seriam uma dúzia, duas dúzias, uns trinta! – mentia o Júlio.
– E sabe o nome deles? – aferroava mais ainda o GNR.
– Sei!
E o Júlio lá debitou os nomes duns oito ou nove dos que participaram no baile e saíram com ele, naquela noite.
– Também há homens casados?
– Sim.
– Os nomes dalguns… Diga-me!
– Nomes completos de casados… Hum!... Não sei! Mas há vários!...
– Bem! Não interessa! Se há homens casados, hão-de vir cá, dois ou três por dia, até resolvermos o problema – informava, seguro, o nosso cabo.
O guarda dera entender que se fossem só dois ou três, não haveria problema. Reconstruíam-se os muros e ficava tudo por ali. Mas o Júlio sabia que era exactamente o contrário! Se fossem só dois ou três, até os fritavam! – explicara-lhe noutros tempos o pai. Sendo muitos, incomoda porque até ao Estado ficam caros. E depois não se pode ter assim meia aldeia presa durante muito tempo.
Estavam nesta conversa quando chega ao posto o Joaquim Daniel, marido da “ti Glória da Venda” que queria saber o que se passava com o Júlio. O cabo limitou-se a informá-lo que o «Sr. Júlio» iria já sair.
E vieram os dois, o Joaquim Daniel e o Júlio, por aí abaixo até Fráguas, cada qual na sua ginga. Chegados à capela, tinham umas dezenas de homens meios curiosos meios preocupados por saber o que se tinha passado, no posto, com o Júlio.
– Sabeis o que vos digo? O cabo da guarda disse que irão todos, dois ou três por dia, a Vila Nova para se identificarem os culpados! Querem saber se foram muitos a deitar os muros baixo – anunciou o Júlio.
Então, um dos presentes gritou para os outros – O melhor é irmos já lá hoje escangalhar aquilo tudo!
O pessoal, unido como era nesse tempo, resolveu ir imediatamente a Vila Nova acabar o trabalho iniciado há umas cinco ou seis semanas mas agora, alinhar a estrada como devia ser para ficar coisa de jeito. Não foi preciso pensar muito para se decidirem. Tocaram a sineta da capelinha e mais gente veio. Cada um foi a sua casa buscar ferramenta adequada. E partiram. Era já noite avançada!
A Ana Justina, ao ver que o seu Acácio não vinha depois de acudir ao toque da sineta, foi por aí acima até à capela. Mas já nada viu. Intrigada, por terem tocado a sineta e já não ver ninguém, dirigiu-se à venda da ti Glória.
– Olha, foram todos p’ra Barrelas, deitar os muros do caminho abaixo. Não te preocupes. A junta também foi! – Acalmou-a a ti Glória.Chegados ao caminho, viram que algumas pedras tinham sido ajeitadas para os carros passarem. O muro do lado sul, perto do prédio do professor Braz, tinha sido derrubado para a vinha e o do lado norte para o caminho. Depois dos muros desfeitos, com ferros e enxadas iam alinhando com as pedras, a “estrada”.
No meio daquela aparente barafunda, chega-se ao grupo um de Barrelas. Vinha de junto do posto da GNR a informar que a guarda estava a preparar-se para vir para o local. Se quisessem podiam ainda fugir. Ninguém lhe ligou! Trabalhavam afincadamente.
Entretanto, o Toninho Maneto, já do lado de Vila Nova, perto da actual pequena rotunda, vira-se e ordena:
– Não caveis mais para cima!
E virando-se para o Júlio da ti Glória:
– Pega aí numa estaca para alinharmos!
A Lua, mesmo em frente dele, parecia convidar ao alinhamento justo da estrada. E grita lá de baixo:
– Direito à Lua!... Alinha para a Lua!.. É pela Lua!...
Este berro de ordem de trabalho é sempre recordado sempre que alguém fala sobre o caso. O «Direito à Lua!» ficaria para sempre na memória colectiva de todos os fravecenses.
Entretanto os da capa russa situaram-se, silenciosos como se montassem uma emboscada, em pontos estratégicos. E foram fechando o cerco aos carapuças.
Quando o Toninho Maneto falou, já a patrulha da GNR os vigiava de perto e deu ordem de pararem o trabalho. Gerou-se alguma tensão. Por algum tempo porém, tudo continuou com a mesma azáfama. Um dos da Junta de Freguesia de Fráguas berrou:
– «Daqui, ninguém arreda pé!...»
Mas passados alguns momentos, talvez uns dois ou três minutos, o Sr. Joaquim Daniel e o Sr. Manuel Ferreiro, membros da junta presentes, ordenaram que toda a gente parasse.
É que o António Tito tinha agarrado pelos pés e deitado ao chão um dos GNRs! O guarda caído de costas e preso pelas pernas gritou para o cabo que desse fogo, que ele já estava preso!
De facto, ninguém mais mexeu uma pedra e, por ordem dos da capa russa, lá foram todos para o Posto da GNR, então numa casa que agora é pertence do Augusto Manuel, ao lado da actual ourivesaria «Diamante Azul». Por cima eram os serviços da guarda, por baixo, o calabouço.
O calabouço era pequeno e portanto, nem a terça parte dos delituosos lá coube. Ficaram aí alguns. Os outros foram transferidos para uma outra casa, frequentemente denominada de prisão, à disposição da GNR e que ficava no sítio do actual quartel dos bombeiros.
A «prisão» foi fechada à chave e os presos a monte, lá dentro. Cá fora, inicialmente, um guarda de sentinela.
E todos estes varões de Fráguas, uns quarenta, cinquenta ou mais «dormiram» sob ordem dos da capa russa. Conversavam sobre assuntos vários, contavam histórias do antigamente e anedotas. O Toninho Maneto foi dos que passou a noite na pândega. De vez em quando, chamava pelo da guarda que o filho estava apertado e queria ir à casa de banho. E todos riam. Faziam uma enorme chinfrineira. De vez em quando, o guarda que fazia a lista de todos os presos lá dentro, gritava aos reclusos:
– Podem calar-se um pouco? Calem-se um pouco, por favor!É que o guarda presente lá dentro não conseguia tomar nota dos nomes dos presentes que nem sequer conseguia ouvir. Mas quanto mais o guarda recomendava, mais barulho faziam. Para além da conversa, batiam com os pés no soalho que ficou sem algumas tábuas!
Quiseram ouvir, ainda essa noite, três pessoas: os dois elementos da junta presentes e o Júlio Lino. Mas limitar-se-iam a arranjar uma lista com os nomes de todos os presos.
Entretanto, por entre o cimo da porta e a torça da prisão, ia entrando «contrabando».
O filho do Órfão de Barrelas foi um dos que por lá apareceu e animava toda a malta não deixando que faltasse pão, presunto, salpicão, vinho e aguardente, que passavam, por entre a porta e a torça, aos carapuças. Também o Luís Basílio de Barrelas lá apareceu com aguardente bacalhau e pão. Barrigas cheias, ninguém pregou olho!
Acordadas, talvez ainda antes do nascer do Sol, muitas mulheres em Fráguas verificavam que o marido ou algum filho faltava em casa. E foi a vez de, aflitas, irem até Barrelas saber do que lhes acontecera. Tocaram a sineta da capelinha e aí vai mais de meio povo de Fráguas a caminho da vila. Levavam comeres e beberes e queriam matar saudades e preocupações. Queriam saber o que era preciso fazer.
Estavam nisto quando os soldados da GNR abrem as portas do calabouço e da prisão e dizem aos homens que podiam sair e ir em paz. Os presos ficaram boquiabertos. Tanto empenho em metê-los no chilindró e agora mandá-los embora sem mais nem menos?!... Aqui havia gato!... Mas… não é que os carapuças não queriam sair da prisão?!...
– Estamos presos, estamos presos! – respondiam.Mas os da capa russa queriam mesmo que os outros saíssem e acabaram por lhes pedir, por favor, que saíssem. Mas os outros continuavam:
– Estamos presos, estamos presos!
E assim continuaram até que começaram a sair e a regressar a suas casas.
O Serafim Baeta tinha telefonado para o Comando Distrital de Viseu da GNR então sob ordens do filho da Sr.ª D. Lucilinha de Fráguas, (irmã da D. Miquinhas cujo marido era importante graduado do exército em Viseu) a contar o sucedido com os carapuças, metade deles nos calabouços de Vila Nova. E a ordem de soltura de todo o pessoal, via telefónica, não se fez esperar. Não os queria, nem mais um minuto, na pildra.
– Foram de coragem! Abençoados os de Fráguas! O quê? Se os muros fossem meus, já estava tudo pulverizado! – diziam alguns de Vila Nova.– Nem sabem o que fazem! Coitados! São uns irresponsáveis! – criticavam outros.
Depois disto, os da capa russa que todas as semanas iam até Fráguas, iriam passar mais de um ano sem por lá aparecer. Todos ou quase acabariam por ser transferidos para outros postos. E daí por diante tudo em Fráguas continuou na paz habitual.
O Júlio, num dia à noite, em casa, antes de dormir, pensou para consigo que se soubesse não se tinha metido naquilo. O que queria era bem ingénuo mas poderia ter dado morte de gente! Poderia ter sido uma tragédia. E se o cabo mandasse disparar sobre os transgressores?! Além disso, havia duas autoridades em confronto: a Junta de Freguesia e a GNR. E ele que era o pai daquilo tudo!
O poder tem os seus meandros mas o que é certo é que, num tempo em que tudo era ainda muito lento, autoritário e burocrático, passado cerca de dois ou três meses apenas, já a estrada tinha sido posta a concurso para obras de alargamento, colocação da brita e alcatroamento, tendo ganhado a empreitada, o Sr. Manuel da Costa, de Penalva do Castelo e o encarregado das obras, durante algum tempo acabaria por ser… o Júlio Lino!
O caminho que os carapuças queriam apenas suficientemente largo como a estrada rudimentar construída até ali acabou por ficar uma rua com mais do dobro ou triplo da largura que pretendiam – a actual Avenida Carlos Trindade e Sá. Acabaria por ser o início da 1ª estrada municipal a ser aberta pela Câmara Municipal para uma freguesia do concelho.
Ao recordar e reconstruir o essencial desta história, o Júlio sentiu saudade da sua juventude e daqueles tempos. Como foi possível um povo pequeno desafiar as autoridades naqueles tempos de autoritarismos?! A resposta está certamente na união, no espírito de sacrifício, de entreajuda e solidariedade que outrora caracterizou os habitantes desta aldeia. Outros tempos, bem difíceis certamente, mas de dificuldades amaciadas pela entreajuda e pela amizade que a todos unia. Foi essa a força de Fráguas. E fizeram muito! Construíram duas estradas, esta e a de Vale de Cavalos, guardavam uma caterva de dias santos e conseguiam ser os primeiros nas lides agrícolas… E, com alguma tristeza, não deixa de transparecer:
– Se fosse hoje!... Ó se fosse hoje!...***
P 1 – Há uns 10 a 12 anos a estrada é alargada, realcatroada e sinalizada, adquirindo a forma actual.
2 – Queremos agradecer a todos os que ajudaram a decifrar esta história, em especial, ao Sr. Júlio Sousa Pereira – o nosso Júlio Lino.
3 – Já depois da elaboração do presente texto, ouvindo outras pessoas sobre o assunto, verificámos que pormenores faltam. Não admira que assim seja, passados mais de 50 anos. Além disso, cada pessoa viveu os factos à sua maneira! Talvez um dia contemos a história de forma mais exacta.
Por Drº Manuel Proença